Nesta quinta – e última parte – deste estudo, Ana Cláudia Bortolozzi Maia e Paulo Rennes Marçal Ribeiro vão tratar do mito acerca da reprodução para pessoas com deficiência, considerada problemática porque “são estéreis, geram filhos com deficiência e ou não têm condições de cuidar deles”.
Em muitos casos, a deficiência pode prejudicar a vida reprodutiva, havendo redução da fertilidade ou problemas correlacionados, mas a infertilidade não torna nenhum ser humano assexuado e nem impede a possibilidade de manter vínculos afetivos e sexuais prazerosos e satisfatórios. De qualquer forma, muitos casais não deficientes também têm dificuldades para ter filhos e podem, assim como as pessoas com deficiência, optar por não ter filhos ou por recorrer à adoção se desejarem exercer a maternidade e a paternidade.
Além disso, é importante comentar que nem sempre a deficiência é hereditária. Há casos de filhos(as) de pessoas com deficiência que nascem sem a deficiência e outros em que há a probabilidade de descendentes com deficiências. De qualquer forma, o aconselhamento genético poderia ajudar as pessoas na decisão de ter ou não filhos, caso um ou os dois progenitores tenham alguma deficiência.
Em casos de pessoas com deficiência intelectual, a decisão de ter ou não filhos(as) pode ser mais difícil e envolve os pais e ou responsáveis. Mas até mesmo nesses casos, poderiam ser incentivadas a ter autonomia e responsabilidade podendo exercer uma vida sexual prevenindo-se de gravidez não programada e ou do contágio de doenças. Não é incomum, infelizmente, impor às pessoas com deficiência uma vida de abstinência ou submetê-las a procedimentos invasivos, como a esterilização. Tal procedimento é desnecessário. Aqueles que se julgam mais capazes do que as pessoas com deficiência deveriam se dedicar a processos educativos que ajudariam essas pessoas a usufruírem da vida sexual ativa e saudável, se elas assim o desejarem.
Há muitos argumentos embasados em julgamentos preconceituosos embutidos nos mitos comentados acima. O modo preconceituoso com que a sociedade lida com a sexualidade de pessoas com deficiência tem a ver com a maneira pela qual, em geral, se tratam das diferenças em relação aos padrões definidores de normalidade. Somos bombardeados com mensagens sobre como devemos ser e como devemos agir. Diante desses padrões de comportamento, que não dizem respeito somente aos aspectos laborais e econômicos, mas também aos aspectos afetivos e sexuais, construímos uma noção de sexualidade feliz que coloca em desvantagem aqueles que são diferentes, no caso, deficientes e que, de modo equivocado, são colocados de lado dessa possibilidade justificando-se a partir de crenças preconceituosas.
A deficiência e a doença sempre foram fenômenos associadas à dor, ao sofrimento e à morte e parece difícil diminuir o estigma de desvantagem social que pesa sobre essas pessoas. Parece ser mais fácil a muitos não deficientes, que se colocam no campo da normalidade e da vantagem social, manter essa diferenciação, o que justifica a manutenção de tantos mitos sobre as dificuldades da sexualidade dessas pessoas distanciando-as do normal. Em alguns casos a deficiência pode até não ser visível e, à primeira vista, as pessoas que têm certas doenças ou déficits escapam do estigma imediato, mas embora os demais possam tratá-los como pessoas comuns e não deficientes, o sentimento de diferença pode estar introjetado na própria identidade do sujeito, que se vê estigmatizado e menosprezado para as questões da vida social e afetiva. Assim, é possível que o preconceito seja algo que se desvela nas próprias convicções e crenças da pessoa com deficiência, de seus familiares e parceiros amorosos que, assim como os não-deficientes, reconhecem a relação entre sexualidade e deficiência como desviante a partir dos padrões sociais de normalidade e anormalidade.
É importante acrescentar que os cinco mitos apontados nesta série não são os únicos em relação à sexualidade do deficiente, embora sejam os mais encontradiços entre nós. A tendência a projetar a própria impotência naqueles que são considerados menos potentes pode levar à produção de inúmeros outros mitos, ou então pode levar à elaboração de versões atenuadas ou radicalizadas dos mitos já existentes. Assim, mais importante que identificar alguns mitos, é essencial considerar a necessidade de uma reflexão constante tanto sobre as ideias que dificultam aos deficientes uma experiência gratificante da própria sexualidade, quanto sobre as raízes sociais e históricas dos conflitos que culminam na elaboração e justificação desses mitos, apontando para um horizonte de mudanças na sociedade.
Os mitos, portanto, têm sido usados para justificar a segregação de pessoas com deficiências na sociedade. Esclarecer e refletir sobre questões do preconceito que se relacionam ao corpo com deficiência, sobre os limites subjetivos e objetivos para viver e expressar a afetividade e a sexualidade, a partir de uma leitura social e cultural da deficiência e da sexualidade, parece ser um caminho promissor para contribuir na superação da discriminação social e sexual que prejudica os ideais da sociedade inclusiva.
Autores:
Ana Cláudia Bortolozzi Maia, Doutora em Educação. Departamento de Psicologia. Faculdade de Ciências. Unesp, Bauru.
Paulo Rennes Marçal Ribeiro, Livre-Docente em Sexologia e Educação Sexual. Departamento de Psicologia da Educação. Faculdade de Ciências e Letras. Unesp, campus de Araraquara.