Tamanho do texto

+
A
--

Além da ficção: o estranho caso do homem que vê sem enxergar

Um homem cego, conhecido no mundo médico como TN, caminha por um longo corredor repleto de caixas, cadeiras e artigos de escritório espalhados.

Ele não sabe que os obstáculos estão lá, mas mesmo assim se desvia de todos, esgueirando-se cuidadosamente entre uma lixeira e a parede aqui, circundando um tripé de câmera ali; tudo isso sem se dar conta de que fez manobras especiais. TN pode não enxergar, mas ele tem “visão cega” - a capacidade de reconhecer objetos em um ambiente mesmo sem ter ciência de que se pode vê-las.

A cegueira de TN é de um tipo extremamente raro, causada por dois acidentes vasculares cerebrais (AVCs) sofridos em 2003. Danificou-se uma área na parte traseira de seu cérebro chamada córtex visual primário, primeiro no hemisfério esquerdo e, cinco semanas depois, no direito. Seus olhos continuam perfeitamente saudáveis, mas, como seu córtex visual não recebe mais os sinais enviados, TN ficou completamente cego.

Já em 1917 médicos relatavam casos de visão cega - então tratados como visão residual - em soldados feridos na Primeira Guerra Mundial. Meio século se passaria, no entanto, antes que começasse uma pesquisa mais organizada e objetiva sobre essa capacidade. Primeiro, em 1967, Lawrence Weiskrantz e seu aluno Nicholas K. Humphrey, então da University of Cambridge, estudaram macacos cirurgicamente alterados. Em 1973, Ernst Pöppel, Richard Held e Douglas Frost, todos do Massachusetts Institute of Technology, mediram os movimentos oculares de um paciente e descobriram que ele tinha leve tendência a olhar para estímulos que não podia enxergar conscientemente.

Essas descobertas suscitaram mais pesquisas sistemáticas com animais sem o córtex visual primário (também chamado V1), a maioria conduzida por Weiskrantz e seus colaboradores. Alguns estudos estabeleceram que os animais retêm uma significativa capacidade visual após a remoção do córtex visual (detectando movimento e discriminando formas, por exemplo).

A pesquisa atual sobre a visão cega busca entender a gama de habilidades de percepção que possam ser retidas por quem sofre de cegueira cortical e determinar quais regiões do cérebro e caminhos neuronais são responsáveis. O conhecimento obtido diz algo sobre todos nós, porque, mesmo que nunca venhamos a sofrer um dano catastrófico como o de TN, as mesmas funções cerebrais inconscientes que se manifestam nele - como a surpreendente capacidade de ver sem saber - são, certamente, uma parte constante e invisível da nossa própria existência diária.

Por isso, quando os cientistas deram-se conta de que o estranho caso de cegueira cortical total supunha uma oportunidade única de estudar o fenômeno da visão cega, pediram então ao paciente que participasse do experimento registrado em vídeo e mencionado no primeiro parágrafo desta matéria. Inicialmente ele não aceitou, mas finalmente persuadiram-lhe e TN deixou de lado a sua bengala branca.

Quando perguntaram a TN como tinha feito para desviar dos objetos, ele simplesmente disse que não estava consciente de nada. Os cientistas seguem pesquisando o mecanismo cerebral responsável por este fantástico "sexto sentido", que, segundo acreditam, teria relações com o subcortex, uma região mais primitiva em termos evolutivos.

Ao que parece este "superpoder" (que explicaria as habilidades do herói cego conhecido no Brasil como ‘Demolidor’) também permite ao cego detectar as emoções expressadas pelo rosto de seu interlocutor.

A neurocientista holandesa Beatrice de Gelder mostrou que o mesencéfalo, uma região chamada colículo superior, que fica em uma parte do subcórtex, é essencial na associação de um sinal visual que não pode ser conscientemente percebi do em uma ação. Em animais não mamíferos, como aves e peixes, o colículo superior é a principal estrutura a receber dados dos olhos. Nos mamíferos, ele é ofuscado pelo córtex visual, mas continua envolvido no controle dos movimentos oculares, entre outras funções visuais. A visão cega exploraria informações que viajam da retina para o colículo superior sem passar antes pelo córtex visual primário.

As pesquisas feitas por Beatrice e seus colegas mostram que o colículo superior atua no cérebro humano como uma interface entre o processamento sensorial (visão) e o processamento motor (que leva à reação do paciente), contribuindo assim para o comportamento visualmente guiado de uma forma aparentemente separada dos caminhos envolvendo o córtex e totalmente fora da experiência visual consciente.

A visão cega de emoções mostradas pelas pessoas também envolve o colículo superior, assim como outras áreas do mesencéfalo, como a amígdala. A visão cega chamou muita atenção de filósofos, intrigados pela paradoxal ideia de ver sem saber o quê – paradoxal, claro, se o ato de “ver” sempre for tomado como “ver conscientemente”. Essa forma de pensar era uma barreira à aceitação da visão cega pelos cientistas, atrasando o progresso na compreensão do papel da visão inconsciente na cognição humana.

Também pode ser um entrave para pacientes sofrendo de perda de visão baseada no córtex, impedindo-os de libertar o potencial de suas capacidades visuais residuais em sua vida cotidiana. Por exemplo, TN se considera uma pessoa cega que ficará totalmente dependente de sua bengala até que seja convencido de que pode enxergar sem saber. O treino também pode ajudar. Após três meses de estimulação diária, pacientes corticalmente cegos estavam melhores na identificação de objetos em seu campo cego.

Agora, saber se o treino em condições realistas pode realmente levar à melhora da capacidade de navegação, a resposta, assim como outros aspectos da visão cega, ficará para pesquisas futuras.

No momento, você pode conferir o vídeo com o experimento de TN:


(Fonte: Scientific American)

Prev Next

Dirão, em som, as coisas que, calados, no silêncio dos olhos, confessamos?

José Saramago

Se meus olhos mostrassem a minha alma, todos, ao me verem sorrir, chorariam comigo.

Kurt Cobain

O homem que não tem os olhos abertos para o misterioso passará pela vida sem ver nada.

Albert Einstein

Oh, paixão, que fazes com meus olhos que não enxergam o que veem?

William Shakespeare

As mais lindas palavras de amor são ditas no silêncio de um olhar.

Leonardo da Vinci

Só se vê bem com o coração. O essencial é invisível aos olhos.

Antoine de Saint-Exupéry

Amar não é olhar um para o outro, é olhar juntos na mesma direção.

Antoine de Saint-Exupéry

A verdadeira viagem não está em sair a procura de novas paisagens, mas em possuir novos olhos.

Marcel Proust

O horizonte está nos olhos, e não na realidade.

Ángel Ganivet

Mulher, teus olhos são meus livros.

Machado de Assis

Conheça a nova coleção da Fiero!

Newsletter (2)