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A saga do cão guia

Era o dia 16 de fevereiro de 2011. Logo que sentei no avião, fiz uma revisão rápida do que havia acontecido até aquele momento. Como alguém que apenas liga fatos que tenham importância, eu, de um segundo a outro, revivia ocasiões e minhas escolhas que foram me levando até àquele momento.

E então, eu nasci cego de um olho e perdi a visão do outro aos 4 anos. Culpar quem? A genética está aí pra isso, perpetuar a espécie e criar diferenças sobre os indivíduos de um grupo. Não que a gente sempre aceite bem o último ás de paus que faltou para fechar um royal straight flush que destruiria a mesa inteira. Acabamos por priorizar muito as aleatoriedades que nos levam a grandes sucessos e, às vezes, remoemos demais as que nos levam a grandes derrotas ou destinos que não eram esperados por nós, isso é da natureza humana. Ser cego eu não considero uma derrota, mas claro que eu não gostaria de ser assim e sempre passo por meus altos e baixos, enquanto lido com esse problema, e o encaro de maneiras diferentes. E os crossing overs através do tempo que me levaram a possuir esse problema genético foram uma sequência de eventos que não me levaram ao royal straight flush que eu gostaria de ter tido.

Eu cresci. Uma infância normal com algumas diferenças. Não vamos nos demorar nessa parte, até porque não é o assunto principal. Vamos diretamente para a parte que eu tinha que me locomover, interagir socialmente com as pessoas, visitar lugares. E como eu faria isso sozinho? Com o uso da bengala, é claro.

Ah, bengala. Eu reconheço sua importância, mas não nos acertamos de jeito nenhum. Reconhecidamente você não me protegia de todo, não me proporcionava a velocidade que eu queria. Era prática para ser posta em uma bolsa e não exigia cuidados muito dispendiosos, mas ainda assim, não era o que eu buscava.

A primeira vez que ouvi falar de um cão guia não compreendi suas capacidades. Com o tempo, acabei lendo mais sobre o assunto e queria ter uma chance de um dia, ter essa facilidade.

Desde meus 16 anos corri atrás do que era possível. Todos os lugares na época exigiam que eu fosse maior de idade. Esperei. E enquanto esperava continuei estudando inglês, porque todos me diziam que no Brasil seria muito difícil de conseguir.

Quando fiz 18 anos, mandei minha aplicação para muitas escolas, brasileiras e estrangeiras, esperando uma resposta positiva. Das brasileiras nunca fui contatado, e nem mesmo sei se alguma hoje em dia está em funcionamento. Sempre me perguntam ‘Como conseguir um cão guia no Brasil, Lucas?’ – e pra falar a verdade eu não faço a mínima ideia. Falta verba no nosso país, falta apoio. Na época, uma escola estrangeira me contatou, mas para dizer que não aceitavam mais brasileiros. Com a crise americana, as verbas que recebiam na época foram diminuídas e os serviços deles não poderiam ser estendidos para outros países como faziam antes. Pelo fato do cão guia ser oferecido gratuitamente ao deficiente visual, o seu custo é muito elevado, envolvendo treinamento, acomodação durante o tempo de treino do usuário e o cão, etc.

Esperei um ano. Em um dia de inspiração, pensei: ‘Por que não procurar uma escola de cães guia no google?’. E encontrei outra escola americana. Esta também aceitava brasileiros. Logo fiz minha aplicação e aguardei ansiosamente.

Dois meses depois, o processo iniciou. Outra espera de oito meses foi iniciada, a qual terminou quando um representante da escola viajou até o Brasil para ver minhas capacidades, necessidades e avaliar qual seria o melhor cão para mim, e se eu estava apto a receber um. E eu estava; eu fui aprovado!

O próximo passo seria tirar o visto americano. E era o que eu estava indo fazer, quando sentei naquele avião no dia 16 de fevereiro de 2011. Sem sombra de dúvidas, eu estava um pouco nervoso. Todos que me contavam histórias de como foi tirar seu próprio visto e que sempre tinha alguma coisa pra atrapalhar – uma fila enorme, perguntas às vezes sem sentido, entre outros.

No momento que cheguei, enfrentei a fila preferencial que não tinha ninguém. Peguei uma senha preferencial e fiz a pré-entrevista, que ocorreu bem. Esperei mais um pouco, minhas digitais foram tomadas e fui conduzido até o guichê onde eu seria entrevistado.

O português do funcionário que me atendeu não estava muito claro. Parecia-me que ele estava sem confiança para falar no nosso idioma, visto que era americano. Ele falava muito baixo, como se não estivesse muito seguro do que estivesse fazendo, o que é normal quando não conhecemos um idioma muito bem.

Ele me deu uma instrução duas, três vezes e eu não entendi o que ele quis dizer. Fiquei um pouco nervoso na hora - ‘nem consigo entender o cara, e agora?’ - mas minha sorte foi que meu amigo que me acompanhava foi mais cabeça fria e por estar acostumado a falar inglês por morar na Holanda, perguntou se o cara gostaria de falar inglês. Uma ideia simples que não me ocorreu na hora, mas que mudou todo o cenário.

Uma transformação ocorreu. Ele falou muito tranquilamente, explicou que deveríamos ir até o guichê ao lado, pois o colega dele era responsável pelos atendimentos especiais, introduzindo a senha no sistema. Fui ao lado, e por reflexo cumprimentamos o atendente em inglês mesmo.

A entrevista ocorreu tudo bem, informei o que eu iria fazer, quando ia e quando voltava. Tive meu inglês elogiado e me desejaram boa sorte, e tive meu visto aprovado.

Resolvi escrever documentando minha viagem, o processo de treinamento por alguns motivos. Eu sempre quis ler uma experiência assim de outra pessoa, detalhe por detalhe. Alguns amigos já passaram por ela, mas o que me contaram foi algo um pouco vago. Acredito que outras pessoas também possuam essa curiosidade. O outro motivo é não precisar contar milhares de vezes a mesma história para amigos diferentes, escrevo aqui e pronto. Espero que gostem.

Talvez na vida eu não tenha tirado o ás de paus que eu queria para fechar o royal straight flush. Mas mesmo o dois de paus que me saiu no baralho, depois de uma olhada mais atenta, me garantiu um flush. E de flush em flush, de pouco a pouco, a gente vai superando, a gente vai lutando e batalhando, pra chegar um dia onde a gente quer - atingir os nossos objetivos da vida, melhorando-a cada vez mais.

 

 

LUCAS RADAELLI é natural de Curitiba (PR). Cego desde nascença do olho esquerdo e, desde os 4 anos, do direito também. Estuda ciências da computação na Alemanha. Lucas se define como deficiente visual, nerd, leitor compulsivo e projeto de escritor que gosta de opinar sobre coisas relacionadas a esses e outros assuntos usando o seu ponto de vista, que, segundo seu bom humor, aparentemente é nulo. Blog: lucasradaelli.com

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