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Garota, eu fui pra Califórnia

Estou sentado em uma poltrona apertada em um avião, sobrevoando algum ponto entre Dallas e Miami.

Não faço ideia que horas são porque meu celular marca o horário da Califórnia, onde certamente o fuso horário já é outro.

Estou voltando da , uma conferência sobre tecnologia assistiva para pessoas com deficiência.

Esta foi a primeira vez que participei desta conferência. Se, por um lado, não me lembro de ter ficado tão cansado tanto quanto estou agora, por outro não me lembro também de quando tive tantas conversas produtivas e ter a chance de conhecer tanta gente que luta para transformar o mundo melhor através da tecnologia.

Inicialmente, eu gostaria de ter escrito um post por dia contando como estava sendo a conferência. Esse plano foi totalmente frustrado, quando notei que eu não tinha tempo para fazer quase nada. Os dias foram repletos de palestras, reuniões e eventos sociais, que tomavam todo o meu tempo de uma forma ou de outra.

Segunda-feira, dia dois de março, tomamos, ou melhor dizendo, tomei o avião rumo aos Estados Unidos. A grande diferença dessa viagem foi que resolvi não levar meu cão guia, Timmy. Desde que cheguei no aeroporto senti um misto de estranheza e de preocupação, afinal, já fazia um bom tempo que eu não dependia da bengala.

Os motivos pelos quais ele não me acompanhou desta vez foram dois: a necessidade de preencher uma série de papelada com um veterinário e conseguir um carimbo do ministério da agricultura e o tempo de viagem, somando os três voos e o tempo de conexão somavam 24 horas, com pequenos intervalos entre os voos, o que poderia dificultar levá-lo para fazer xixi fora do aeroporto. Minha previsão foi acertada, porque em dois voos estivemos atrasados e de fato eu não teria tempo para levá-lo.

Gostaria de me estender um pouco sobre este assunto, viajar sozinho e ser cego ao mesmo tempo. Pode parecer complicado a primeira vista, mas a verdade que é perfeitamente possível, seja com cão guia ou com bengala. Imagino que a maioria das pessoas que não enxergam façam como eu, – preparam-se com o máximo de informação disponível sobre o trajeto, informações de contato de pessoas próximas e com os pontos mais importantes, tais como endereço do hotel. Isso não significa que não nos sintamos ansiosos e até mesmo preocupados as vezes com as viagens, tal como todo mundo se sente.

A maior parte das minhas preocupações vem do fato de eu não conseguir prever todo o caminho, encontrar coisas que talvez eu não consiga resolver na hora, tal como me perder em algum lugar e demorar muito para me achar, me atrasando para algo importante. A maioria das minhas preocupações sempre são infundadas, visto que nunca aconteceu nada de sério comigo, e, quando algo fora do previsto acontece, sempre fui capaz de dar um jeito. Isso que digo pode parecer óbvio para alguns, bobo para outros e até mesmo redundante. Mas o objetivo é que alguém que não enxergue, se um dia ler esse texto, não se preocupe tanto assim com as coisas desconhecidas que possam ocorrer em uma viagem. É tudo uma questão de improviso e conversa, e tudo se resolve.

Logo que sentei no avião, já coloquei o meu inseparável par de fones de ouvido com cancelamento de ruído. É difícil imaginar fazer uma viagem de avião sem um desses, a diferença é mais do que notável desde o primeiro instante que você coloca um. O barulho some completamente!

Mas não tive muito tempo para aproveitar meus fones. Duas batidas no meu braço, e uma voz conhecida dizendo – Lucas! – Logo me interromperam. Não foi uma interrupção ruim, era apenas uma das primeiras coincidências desta viagem, um dos meus colegas de trabalho estava pegando o mesmo voo que eu e nenhum de nós sabia disso até aquele momento.

O voo foi tranquilo e a conexão também. Acabei me separando do meu colega naquele momento, porque fui para um destino diferente do dele. Ali, algo que aconteceu comigo quatro anos atrás se repetiu, queriam me levar de cadeira de rodas.

Eu realmente não entendo essa dos americanos de sempre quererem levar cego de cadeira de rodas quando vão buscá-los no avião. Chegaram ao ponto, em certas conexões que fiz, a insistirem que eu sentasse na cadeira, porque tornaria o trabalho mais fácil. Eu respondi que sendo fácil ou não, eu iria andando. E foi o que fiz.

A teoria de um colega meu é que dada a cultura do processo dos EUA, eles estão se prevenindo de qualquer eventualidade que possa ocorrer comigo. Caso eu caia, me machuque de alguma forma, eles estariam protegidos contra isso. Outro colega sugere que eles estariam oferecendo isso para pessoas cegas que possam ter mais de um problema além da cegueira, o que é compreensível, mas que se torna absurdamente bizarro de ser forçado dessa maneira.

Não importa. Eu, e talvez minha teimosia, fomos andando e pegando os aviões até chegar em San Diego, cidade da conferência. Pouco antes de entrar na última conexão, uma pessoa bate no meu ombro e pergunta se eu estaria indo para a CSUN. Respondo que sim, e naquele momento já fiz outro amigo, que fomos conversando o próximo voo inteiro sobre acessibilidade e coisas da vida. De fato, você conhece gente onde menos espera.

Cheguei ao hotel tranquilamente, na terça-feira a noite, mais ou menos 24 horas depois de ter saído de casa no dia anterior. Foi cansativo, mas só estava começando. No dia seguinte, a coisa real iria começar.



LUCAS RADAELLI é natural de Curitiba (PR). Cego desde nascença do olho esquerdo e, desde os 4 anos, do direito também. Estuda ciências da computação na Alemanha. Lucas se define como deficiente visual, nerd, leitor compulsivo e projeto de escritor que gosta de opinar sobre coisas relacionadas a esses e outros assuntos usando o seu ponto de vista, que, segundo seu bom humor, aparentemente é nulo. Blog: lucasradaelli.com

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Existe um caminho que vai dos olhos ao coração, sem passar pelo intelecto.

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